Você está em Artigos

Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore

Autor: Patricia de Cássia Pereira Porto
Data: 05/07/2010

RESUMO


O discurso oral é um tecido social coletivo. Somos herdeiros das tradições orais que formaram vários povos, herdamos das tradições simbólicas as histórias que tecem toda cultura oral nascida no seio da coletividade. As vozes que ecoam das classes populares, dos griôs, dos oprimidos, dos iletrados - é a voz da memória mítica que ao ressurgir como força motriz de uma memória coletiva nos faz mergulhar na nossa História brasileira feita de muitas histórias singulares silenciadas, sufocadas, interrompidas.  Por isso a proposta deste texto nasce da busca por uma práxis transformadora que propicie a inclusão efetiva da prática da "oralidade" e da arte folclórica, bem como a conseqüente pluralidade de saberes que daí advém como processo de re-significação do passado no presente. Isto objetivando mostrar a criança como sujeito da sua própria cultura e história, autora das suas palavras. Propomos assim um discurso oral dialogado que enfatize a poética da linguagem na "escolarização da literatura" na escola.

Miremos as crianças. São aprendizes de tecelãs, muitas trabalhadoras e arteiras desde a infância. É possível aprender com elas a importância das trocas simbólicas que habitam a arte de um conhecimento comum partilhado entre brincadeiras e desafios, entre a alegria e a espera, entre o que há de invenção, de imaginário e o que há de real e concreto no mundo vivido. Como na conhecida cantiga:

Ciranda Cirandinha
Vamos todos cirandar
Vamos dar a meia volta
Volta e meia vamos dar

O Anel que tu me destes
Era vidro e  se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou

Entre a brincadeira e a realidade, quantas crianças, nas rodas ou passando anéis em tempos diversos, já cantaram esses versos? Quantas vezes essas mesmas rimas foram repetidas? Inúmeras vezes por certo. Podemos perceber então que resiste na sobrevivência das brincadeiras de roda uma cultura infantil que traz entre seus elementos a literatura oral e a arte folclórica e que é essa a cultura que faz renascer nas brincadeiras infantis, em ambientes rurais e urbanos, antigas cantigas e trocinhas, que mesmo modificadas e por vezes "escolarizadas", são novamente entoadas diante do enfrentamento dos sofrimentos do mundo ou diante da celebração das "bonitezas da vida". Ciranda, cirandinha....Cantar para seus males espantar. Cantar e contar para não morrer, para zelar por toda uma existência humana, para resistir à aculturação. E é a memória a forma mais singular que encontramos para a preservação de uma cultura local. Assim a literatura oral que também pertence à arte do povo é patrimônio cultural de um coletivo e de sua ancestralidade.

A memória coletiva que está na fala, nos tecidos, nos bordados, na dança das agulhas, das ferramentas que forjam a possibilidade de um conhecimento comum e que está também nas narrativas orais, na poética da linguagem, na poética da realidade, nas relações sociais. Exemplo dessa poética pode ser encontrada nos poemas de Patativa do Assaré, como aquele sobre: "uma triste partida".

(...)Agora pensando segui ôtra tria,
Chamando a famia,
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
Nós vamo a São Paulo
Vivê ou morrê.

(...)
Nós vamo a São Paulo, que a coisa tá feia;
Por terras aleia,
Nós vamo vagá
Se o nosso destino não fô tão mesquinho
Pro mêrmo cantinho
Nós torna a vortá (...)

Em riba do carro se junta a famia;
Chegou o triste dia,
Já vai viajá.
A seca terrive, que tudo devora,
Lhe bota pra fora
Da terra natá.

 (...)Faz pena o nortista, tão forte, tão bravo
Vivê como escravo
Nas terra do su.

Literatura oral ou folclore? Qual seria a fronteira ou os limites que delimitariam o que é da cultura literária e o que é da cultura folclórica no poema de Patativa?  A única passagem registrada do "poeta cantador"  por uma escola teria sido aos doze anos de idade, onde ele permaneceu  apenas por um curto período de seis meses. E partindo desse texto peculiar do panorama literário brasileiro, nos propomos a seguinte reflexão: como analisaríamos a "bagagem linguística e cultural" de alguém que poderia vir a ser considerado, pelo prisma da educação formal, analfabeto ou mesmo analfabeto funcional, sem correr o risco de cair num tipo qualquer de estigmatização do que é "popular" na literatura brasileira? E se pensarmos nas salas de aula e na escolarização da literatura, caberia justificar apenas pelo uso da "licença poética" versos como estes: "Vivê como escravo/ Nas terras do su", sem se levar em conta o contexto do poema? Ou seria o poema de Patativa usado nas aulas de língua portuguesa como pré-texto para correção ortográfica,   exemplo das tantas variações linguísticas no uso da linguagem informal?

No poema de Patativa de Assaré encontramos muitos pontos de aproximação com a cultura escrita. Assim demonstrando que o poeta cantador de Assaré não somente reconhecia a valorização dada a "cultura letrada" como a problematizava em muitos dos seus versos. E essa valorização à "cultura letrada" também fica evidente na literatura de cordel, escrita e cantada pelos violeiros. Pois quanto mais o cordelista se aproxima da cultura escrita erudita mais ele é valorizado entre os outros cordelistas.   E o "desafio" para o repentista pode estar muitas vezes na própria tentativa de diálogo com a "cultura letrada". 

A partir desses questionamentos e, na tentativa de melhor compreender meu objeto de pesquisa: "Por uma poética da linguagem oral na escolarização da literatura infantil", é que me proponho analisar esse ponto de interseção ente literatura e folclore que é a cultura oral popular. Esta que traz em seu cerne uma "cultura literária" própria, uma cultura de "povo", que se fazia e se faz pela "oralidade" através das adivinhas, dos adágios, das trocinhas,  das parlendas, das ladainhas, da contação ou narração de histórias. O termo literatura "popular" se origina também do conceito de "cultura", que etimologicamente, provém do latim colere e que serve para designar as duas ações do cultivo: cultivar e colher.  Quando pensamos em cultura, cultivar já carrega na criação do ato o produto da própria criação em semente: cultivar e colher o fazer para criar o saber.      

A literatura embora nomeada a partir da littera (letra), o que nos remete à escrita, tem seu gérmen na cultura oral, nas primeiras tentativas humanas de registrar através de um código memorialístico de narrativa, de um repetere e religare constantes,  a sua existência e a sua consciência temporal e cultural, repleta de significâncias.  Walter Ong (1998, 21), em seu livro "Oralidade e cultura escrita",  diz que pensar  a tradição oral como "literatura oral" é pensar em cavalos como automóveis sem rodas, é colocar o carro na frente dos bois.  Problematizando a afirmativa de Ong, recorro  À  Canção de Rolando, uma epopéia anônima, que como todas as epopéias, nasce na oralidade (epos), é registrada por uma memória coletiva, para passar depois ao registro da escrita. A Canção de Rolando relata os feitos do Imperador Carlos Magno e seus Doze Pares da França (768-814). Muito lida no nordeste, principalmente nas áreas de sertão, a História do Imperador Carlos Magno  retorna à oralidade, através do teatro popular ao estilo vicentino, associando-se à cultura popular nordestina. (Vassalo, 1988) E deste novo movimento de oralidade, a canção "transfigurada" volta à escrita através da literatura de cordel. A canção de Rolando nasce oral e coletiva,  passa à escrita e à erudição, e por fim ainda vive seus dias de manifestação folclórica. 

Quando se fala em "epopéia" se quer identificar, sobretudo a voz coletiva, que vai acabar suprimida no "romance burguês". Diferente do herói coletivo das epopéias, a personagem do romance é sempre um "indivíduo" que se constitui numa sociedade que tem como pacto social o individualismo. E retomando ainda a citação de Walter Ong sobre "carros na frente dos bois" , como ainda é possível no Brasil encontrar o chão barrento por onde passavam "carros de boi", é possível ficar mais à vontade, não para colocar o carro à frente dos bois, mas ao lado, ou melhor, indo com os bois.  Portanto não acredito que haja qualquer desuso ou contradição no termo "literatura oral" para as primeiras histórias que surgem  na oralidade e que permanecem por muito tempo assim - histórias que fizeram e fazem parte de um vasto acervo popular, pois delas trazemos em forma de memória fluída e volumosa o que recebemos do passado de uma coletividade; memória coletiva que, re-significada no presente, persiste através da voz, através de uma herança cultural coletiva, poética e mítica, também pertencida ao folclore, pertencida ao povo que trabalha, se alimenta, canta, brinca, dança e narra seus feitos, suas batalhas, suas tragédias.  E é essa narrativa que é ao mesmo tempo é trabalho e "ciranda", circularidade de fazeres e saberes que nomeamos por "cultura literária oral". Trata-se então de pensar a literatura em sua ampla expressividade, parafraseando aqui Antônio Cândido, procurando "chegar a uma interpretação estética capaz de assimilar a dimensão social como fator de arte", numa perspectiva de entender a obra literária "fundindo texto e contexto, numa interpretação, dialeticamente íntegra" ( CÂNDIDO, 1985, p.4-7).

  Próxima
Como referenciar: "Poética da Linguagem; Um Trançado de Bilro entre Oralidade, Literatura e Folclore" em Só Pedagogia. Virtuous Tecnologia da Informação, 2008-2024. Consultado em 05/05/2024 às 11:06. Disponível na Internet em http://www.pedagogia.com.br/artigos/poeticadalinguagem/